quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Bueiros

Quando estou voltando para casa à noite, atravessando as ruas escuras da vila, é como se um clima ali se criasse. Não como num filme de suspense, no qual parece que algo assustador está para acontecer, tão menos de terror, que é pesado, apelativo e cruelmente ameaçador.
É um clima de um tipo de filme que ainda não foi criado, mas que se fosse feito, focaria o momento em si, explorando todas as variáveis e possibilidades de um instante, sem se importar em delimitar uma história com começo, meio e fim.

As ruas estreitas, escuras, melancolicamente iluminadas por postes sujos de luzes alaranjadas medianas quase fracas. Casas já reclusas, cortinas fechadas, por vezes entreabertas, claridades mudas de televisão piscam entre as frestas. Cachorros atrás e em frente aos portões, grandes, médios, pequenos, deitados, dormindo, em pé, circulando, vigiando em alerta. Olham-me de relance, eles não latem e não me avançam, ainda bem.

Talvez por eu caminhar lento, abaixar a cabeça, me curvar ao silêncio, demonstrar respeito. Não, medo não. Eles desprezam o medo, atacam-no.

Caminho sobre a calçada, em baixo dos postes o concreto brilha sob meus passos, parecem milhões de lasquinhas de vidros, refletindo a falsa luz como fazem as purpurinas .
Tudo em volta obscurecido, em preto, apenas o brilho do chão, uma música, um caminhante. São centenas de cenas que se criam na mente, seguidas, se sobrepondo, relacionando-se, num fluxo involuntário.

A cada esquina que viro, já sei o que vou ver, tão bem conhecidas, todos os dias, todos os dias. Mas o clima sempre é igualmente envolvente, como se ainda fosse a minha primeira vez ali.

Há bueiros a cada rua que passo, eles escorrem por dentro e eu os escuto. Durante o percurso são suas lamurias que preenchem a quietude da noite, parece córregos, pequenas cachoeiras que inundam o subsolo, num constante correr de nossas águas sujas.
Há noites em que eles choram apenas aos pingos, a cada três passos que traço é uma gota que escuto cair.

E o som ecoa em minha mente, reverbera no meu corpo e chicoteia entre os muros até se perder desgastado na extensão do asfalto solitário.

Certa vez eu parei para conversar. O bueiro implorava para que eu ali parasse. Fiquei um instante em repouso total esperando ele pingar. E logo pingou.
-Ping – De imediato lhe respondi.

Ele agradeceu a atenção, então continuei a andar.

-Pobre bueiro - pensei solidária delirante - todos pisam nele, ninguém pára, ninguém se importa.

Gosto de bruscamente parar enquanto estou andando e ali estagnada ficar por um momento. Tudo continua a acontecer, mas eu parei. De repente, de agente, passei a ser apenas um observador. Sinto que tudo em mim se estagna junto, quase posso ouvir a freqüência cerebral entoando agudo em meus ouvidos. E tudo ao redor se intensifica, o silêncio passa a ter uma presença repleta de movimento.

As sensações de perigo e o medo dão as caras, não há ninguém à vista, me sinto vulnerável ali parada, ameaçada e agoniada, mais uma vez centenas de cenas turvam a lucidez. Volto a caminhar com pressa.

Antes de abrir o portão, ainda sento no chão e curto mais um pouco daquilo que parece ser uma dilatação na percepção.

O poste sobre mim pisca, ameaça se apagar, parece estar me expulsando.

Levanto , destranco o portão, abro, fecho, tranco o portão.

Acabou o filme.

3 comentários:

  1. Um filme mesmo,mergulhei nos detalhes... Rs

    Na verdade,caminhar sozinha a noite me dá um pouco de medo,mas as vezes é bom.Legal,como minha casa é na esquina,tem um bueiro em frente,e desde pequena eu sou suuper curiosa sobre bueiros,mas esses barulhos as vezes até me estressam(rs),e sobre o poste piscar,sempre acontece comigo tambem,bem na hora que a gente passa,ele pisca...Rs,dá até um receio.

    Muuuuito,muuuuuito bom,ótiimoo,peeerfeito na verdade!

    Um abraço,Carol!

    http://pedaciinhosdemim.blogspot.com/

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  2. Bem... devo assumir que sempre que leio seus textos tenho muita vontade de fazer um comentário bem legal, só que realmente quase não sei o que dizer, mas acho que isso vem do fato de que os seus textos são tão reflexivos, tão bons de se ler, são palavras para serem guardadas e não discutidas! Não sei descrever direito, mas o melhor que posso dizer é que seus textos trazem um misto de sensações. Enfim, eu gosto e pronto! ;D
    Beijo. ;*

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  3. Não é preciso que eu diga novamente, é? O clima surreal imposto no cotidiano é algo que você faz, e que eu provavelmente nunca conseguirei fazer. Me mato lendo seus textos. Leio, releio e tento entender. Mas, a cada nova leitura, novas percepções de uma mesma coisa surgem. É isso que eles fazem, não é? Brincam com a concepção das pessoas sobre atos, sobre cenas, sobre imagens, sobre narrações. E mesmo assim, não me canso da leitura. Muito bom!

    Atenciosamente, Tadashi Katsuren.
    Contos e poemas, escritos por mim, em:
    let-me-fly-with-you.blogspot.com

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