terça-feira, 11 de agosto de 2009

O homem e a sombra


Mantinha a feição emburrada e contraída o tempo todo, sentado ao meio-fio com as mãos segurando a cabeça tampava os próprios ouvidos, olhou-a rapidamente com o canto do olho para ver se já tinha ido embora, ainda não.
- Não se cansa de me perturbar?- atacou-a como sempre fizera- Porque não vai embora?
Ela respondeu sem se alterar -nunca se alterava- mas não conseguiu ouvi-la claramente, então afrouxou as mãos dos ouvidos para destampá-los disfarçadamente sem que ela visse, inútil, ela sempre via. Inúmeras vezes ele se perguntara como, mesmo sem olhos, ela conseguia ver tudo o que ele fazia...
-Eu disse- repetiu para que dessa vez fosse escutada- que não tenho para onde ir.
-Eu ouvi- mentiu num tom impaciente –então por que não vai perturbar outro?
-Não posso – Disse, e frisou - sou sua.
-Minha?- retrucou com uma risada histérica, preparando-se para explodir- Mas eu não te quero!! Você está sempre agarrada em meus pés, sempre me seguindo, me imitando e vigiando! Não percebe que eu odeio isso???
-Eu sei, você já disse...
-Então qual é seu problema? Você é burra por acaso?
Ela manteve-se naquele silêncio débil que ele tanto detestava. Resignado desistiu de gritar com ela, sabia que não adiantaria nada, já fizera isso tantas vezes, mas ela nunca se magoava, sempre continuava ali, fria e inalcançável por mais perto que estivesse.
-Me diz então- suspirou tentando manter a calma- como consegue me ver?
-Vejo-o com seus próprios olhos...
Calou-se por um momento, por mais que tentasse não conseguia entende-la, parecia que sempre falava por enigmas. Ela também não disse mais nada, tinha o péssimo costume de só falar quando ele se dirigia a ela. A essas alturas das discussões, ele já se encontrava exausto e recorria apelações desesperadas.
-E se eu morrer?
Perguntou gravemente, num tom sutilmente ameaçador, a fim de provocar-lhe alguma emoção.
-Eu morro também...
Respondeu fria. Ele já esperava uma resposta parecida, mas o que impressionava, se é que isso ainda o impressionava, é que ela dizia coisas sérias assim, tão impassivelmente como se respondesse a qualquer questionário rotineiro. Há muito já concluira que ela era uma obcecada passiva, que enlouquecendo, afogava-se em sua própria indiferença, caminhando cada vez mais rápido para um estado mental vegetativo, onde a única função que conseguia exercer ainda com excelência inquestionável era segui-lo. Ah! Isso ela sabia fazer como ninguém, até parecia que nascera siamesa com ele. Ele que sempre tivera, em sua opinião, uma memória muito boa, chegou a um ponto no qual se quer conseguia lembrar como era sua vida antes de conhecê-la, como era se sentir livre, sem a sensação esquizofrênica de que ela o perseguia o tempo todo pé ante pé.
Despertou subitamente de seus pensamentos lamentosos, lançando-lhe a pergunta quase como impulso de seus desejos não tão ocultos:
-E se eu te matar?
Ao seus próprios ouvidos, o tom venenoso que envolveu sua voz saiu tão ameaçador quanto sua nebulosa intenção.
Por um momento achou que o mesmo efeito tinha aos ouvidos dela, pois não respondeu-lhe de imediato como costumava fazer. Teve a breve e forte impressão de que ela o encarou num misto de surpresa e medo, mas se ela o fez, fez tão rápido que tão logo a impressão se dissipou. Era difícil captar uma reação concreta dela, já que se quer tinha olhos para expressar-se. Na casa da sua alma, não tinha janelas e as portas estavam muito bem trancadas.
Ao romper aquele instante de silêncio indignado, com uma gargalhada rasgada, ela estraçalhou qualquer gosto de vitória que ele por um momento achou ter sentido.
-Não seja ridículo!
Exclamou cínica e absoluta.
“Não seja ridículo”, repetiu mentalmente a frase carregada de deboche e desprezo,
que ela acabara de jogar-lhe na cara. Com um, quase, imperceptível esforço mental, procurou em sua memória alguma outra vez na qual ela revelara outro sentimento que não fosse a eterna obsessão por ele. Tinha quase certeza de que essa havia sido a primeira vez de tal manifestação.
Viu-se impotente, se afundado na humilhação que aquela frase, acompanhada da inédita e odiosa gargalhada, o fez sentir.
Sentiu-se grotescamente derrotado por alguém que mais estava para um reflexo ofuscado dele mesmo. Toda a certeza que tinha da superioridade de ter sobre ela veio abismo abaixo; também teve a nítida sensação de ter sido discretamente manipulado por ela durante sua vida toda, principalmente ao recordar-se que muitas das vezes ela era quem esteve a sua frente, alta e esguia impondo-se diante de sua vista. Então se deu conta de que por mais que sentisse no comando, sabendo que ela estava sob seus pés, ou simplesmente caminhando ao seu lado, era só ele dar as costas para o sol que ela bruscamente tomaria a sua frente, apontando o caminho que ele devia seguir. Não que fosse obrigado a segui-la, mas o simples fato de que ela estaria imponente a sua frente, tornava sua presença insuportável.
Suspirou resignando-se mais uma vez, agora já não adiantava brigar, rebeldia à essas horas custaria a pouca energia que ainda tinha para levantar-se e ir para casa. E assim o fez, levantando-se sem olhar para o lado, onde ela se encontrava, protegida por seu inócuo silêncio, como se nada tivesse acontecido. Louca do jeito que era talvez nem tivesse se dado conta dos sentimentos que fez desencadear dentro dele e muito provavelmente já devia ter se esquecido do que acabara de falar.
Cabisbaixo e sem pressa alguma, iniciou a nostálgica caminhada contra o sol que mais uma vez se punha lentamente. Mesmo sem vê-la, tinha a absoluta certeza de que ela caminhava logo atrás, podia sentir o frio de seus pés colados com os dele, enquanto seu corpo todo se estendia contra o chão, engrandecendo cada vez mais, à medida que o sol descia para trás dos morros. Mesmo ela estando fora de sua vista, ele sabia que assim que tivesse que virar a esquina ela tomaria à sua frente, e por isso, gozava satisfeito de cada passo, enquanto estava contra o sol, andando tão vagarosamente que o sol se esconderia totalmente antes mesmo que ele precisasse virar aquela maldita esquina...

Na saúde e na doença.




Segurava a presilha de cabelo fervorosamente. Estava enlouquecendo de raiva. Envergava a presilha para um lado:"Tic!" Envergava para o outro:"Tac!"E continuava repetindo os movimentos, a torcendo freneticamente:"Tic! Tac! Tic! Tac..."
O barulho impertinente se misturava e se confundia com o mesmo barulho do relógio, esse, já no ritmo mais acelerado dos segundos.Aquilo irritaria qualquer um que já estivesse aflito, mas a ela já não afetava mais. Sua atenção não estava mais em coisas ao redor, estava longe, focalizada em seus sentimentos rancorosos:
-Maldito! Maldito! Maldito!
Ficaria ali até o amanhecer, degustando o amargo gosto do ódio, repetindo para si mesma os mesmos xingamentos, rangendo os dentes e entortando a presilha. Quase todos seus dias eram assim, remoia suas eternas decepções maquinalmente, desde as adquirida ao longo de seu casamento frustrado até aquelas que já nem sabia mais do que se tratavam.Despertou do transe num ímpeto, ao ouvir os passos trôpegos na varanda.
-Maldito!
Como uma onça em ataque, deu rápidas e ferozes passadas até a porta e a puxou abrindo-a bruscamente, quase arrebentou o trinco como fizera nas outras noites.O pobre homem foi puxado para dentro e espatifou-se escancaradamente sobre o chão. Murmurou algumas palavras arrastadas de dor e esforçou-se para levantar-se. Estava totalmente bêbado. Quando finalmente esteve em pé, desequilibrou-se e ameaçou a cair novamente, antes que pudesse a mulher agarrou-o pela gola da blusa e arrastou furiosamente pela casa.
-Seu nojento! Seu fraco! Seu... Seu MALDITO!!
-Maldita é você! Me laargaa sua vaca malucaa!
Gritavam os dois no meio da madrugada. O homem debateu-se no chão e a mulher já não pode mais agüentar o peso do marido. Largou-o. Mole e descoordenado agarrou-se nos móveis para estar de pé novamente. Quis mostrar comando e levantou a mão, na intenção de batê-la, tentou, mas não conseguiu, seus movimentos eram lentos e pesados, enquanto a mulher mexia-se como uma fera.
- Ridículo! Mal consegue abrir os olhos seu idiota! Eu é que mereço te bater! Por todos esses anos horríveis que tem feito me passar! Amaldiçoou minha vida seu desgraçado!
-Você que amaldiçoou a minha, parasita!
-Maldito!!
Gritou avançando para cima. Socou-o com as duas mãos, tomada pelo desprezo e pela raiva. Os dois rolaram e se machucaram pelo chão da cozinha, e quando ambos estavam esgotados e moídos, a mulher alcançou a faca de açougue em cima da pia, mas não teve forças o suficiente para cravá-la contra o peito do marido. Então, caiu sobre ele, desmaiando com a faca na mão. E os dois permaneceram ali, dormindo juntos. Unidos pelo matrimônio, na saúde e na doença...

Chapéu de palha


Um chapéu de palha jogado na beira da praia. O homem agachou-se para apanhá-lo. Estava bem cuidado, mas aparentava ser velho. Um tanto feminino, mas não se importou de vesti-lo; por pouco a onda não o levara, ainda estava seco, embora meio sujo de areia. Deduziu ter sido arrancado da cabeça de alguma mulher que andava pelas proximidades, a custa da força do vento. Estava um dia escuro, nublado, frio e com fortes rajadas de ventos, de longe era o único caminhando pela praia. A moça, dona do chapéu de palha devia estar andando por ali à pouco tempo. Era loura. Achou preso entre os fiapos soltos, dois fios de cabelos louros. Teve a idéia louca de procurá-la, talvez a achasse a poucos metros dali. Assim devolveria o chapéu perdido, poderia ser importante para ela. Foi pensamento de instantes, logo o achou idiota. Não poderia sair perguntando para todas as moças louras que encontrasse se reconheciam o chapéu.Ou poderia...Quem sabe, quando a visse, mesmo que ela estivesse ao longe, de costas, com um longo vestido branco( como a imaginava), a reconheceria e pensaria: é ela. Então ainda no mesmo dia, apaixonados se casariam, porque sentiria que era a mulher de sua vida, e ele o homem da vida dela. E ela seria maravilhosamente linda.Aquela certeza descabida fez com que retomasse as esperanças e começasse a correr com a intenção de alcançá-la, seja a onde estivesse. Deu uns vintes passos largos e desesperados ao encontro da mulher de sua vida, com quem teria seus mais lindos filhos, uns dez passos tortos e receosos de sua decisão, e mais cinco passos finais, certos de que não a encontraria. Parou. Desistiu. Esteve um longo momento estacionado com pose de fracasso, julgando a si mesmo ridículo. Tirou o chapéu de palha da cabeça e jogou-o ao vento, juntamente com todo seu romantismo. Mudou a direção e voltou a caminhar, desta vez em direção a cidade. Já estava tarde e precisava a voltar trabalhar.Minutos depois uma moça de longos cabelos louros achou seu amado chapéu caído sobre a areia. Abaixou-se e recolheu-o junto ao peito aliviado. O ganhara há anos e lhe era muito importante. Pensou que alguém o devia ter apanhado a alguns metros antes, caminhado com ele e em seguida jogado ele ali, a julgar pela distancia em que foi o achar. Ainda teve tempo de avistar a silhueta de um homem indo em direção à cidade e depois sumir-se no cinza dos prédios. Talvez fosse aquele homem estranho quem o tivesse achado. Ou talvez, fosse apenas obra do vento.Vestiu-o e voltou, refazendo o caminho percorrido na busca do chapéu. Seus cabelos louros esvoaçavam-se, seu longo vestido branco também. Sim, era inegavelmente linda.

O gaúcho e o pinguço

O velho gaúcho, sentado sobre uma pedra, segurando com uma das mãos a bomba de chimarrão e com a outra a cuia, tinha consigo um antigo olhar sem vida que se fixava vazio no movimento da rua durante horas a fio.Como de costume, chegava o pinguço e sentava ao seu lado, ás vezes mais cedo, ás vezes mais tarde, mas nunca faltava. Vinha direto da rua, onde era seu lar, numa eterna ressaca, com a pinga numa mão e a outra apalpando os muros para não ir de encontro ao chão.Sentava no meio fio, ao lado de seu amigo de calçada e após alguns segundos de silêncio iniciava a incansável falação.O velho gaúcho nem ligava, até gostava. Passava o dia sentado ali, em silêncio, ouvindo apenas os escassos barulhos da rua pouco freqüentada. Mas quando chegava o pinguço , ele até sentia mais próximo a presença de vida, por mais decadente que ela fosse, pois ele tossia, escarrava, cuspia, fedia e até chorava quando relembrava sua juventude perdida. Sem dizer nada, o velho gaúcho murmurava uma falsa indiferença e quando estava mais disposto até concordava com a cabeça.Era quase uma valsa, dançada por dois aprendizes tristes e acomodados.Iam assim até o escurecer, entre um gole de pinga e uma bombeada de chimarrão, os dois valsando num ritmo incomum e desordenado, cada um com seu jeito.Ao fim do dia, o velho gaúcho se levantava e com um aceno discreto se despedia, dando as costas para o seu amigo pinguço. Não que desejasse ir embora, por ele, ficaria sentado ali fora o tempo que a vida lhe permitisse ficar. Mas o medo de nunca mais voltar a ver o único amigo lhe obrigava a sair antes, pois o vendo sentado ali enquanto ia embora, dava lhe a impressão de que no dia seguinte ele estaria esperando-o no mesmo lugar.Suas vidas eram assim, tinham o mesmo prazer incomum, o de se encontrarem, talvez o único que lhes restava, com exceção da pinga e do chimarrão. Esperavam a noite toda o novo dia que ainda não chegava, um em casa e o outro na rua. Ambos afundados na mesma solidão.