domingo, 23 de maio de 2010

Trem solidão

Sentia-se estranha, estava estranha.

Alguém ao seu lado contava uma história triste, de início até ouviu. Era sobre uma mulher pobre, num casebre velho, seis filhos, dos quais cinco eram pequenos e uma era retardada mental. Essa passava dias e noites num quarto, sentada, olhando para o chão, vinte e quatro anos, calada, sem vida...
Aquilo a atingiu, triste pensou na decadência em que o ser humano é capaz de chegar.

A história continuava a ser contada, mas aos poucos as palavras ao seu ouvido iam perdendo sentido, o sentimentalismo e a compaixão foram se ofuscando em seu interior e o sofrimento alheio, se distanciando, ia se tornando cada vez mais e mais alheio.
Logo sua mente estava vazia, aquela pessoa continuava a falar, mas eram palavras distorcidas que entravam e saiam por seus ouvidos. Queria prestar atenção, mas um sentimento angustiante tomara conta de seu coração, ele estava sendo esmagado.
Por dentro se contorcia, agonizada com aquele silêncio oco e escuro tomando conta de si.

Estavam sentados em um banco na rodoviária, esperando o próximo ônibus das dezenove horas. Ela gostaria de conversar, de ser agradável e sentir-se bem, mas não conseguia. Naquele instante ela queria apenas deixar de sentir aquilo, nem que para tal tivesse que deixar de existir. Com os olhos fixos no ar, não reconhecia mais nem quem estava ao seu lado, a pessoa amada que lhe contava histórias ali, agora era só uma impressão na periferia da visão que falava coisas sem sentido. Apenas conseguia se concentrar naquilo que parecia ser sua alma em desespero.

Então, ouviu a turbulenta maquinaria se aproximar num estrondo crescente. Não era o ônibus, era o trem.

Vinha com a força arrazante da combustão, ferro correndo contra o ferro.
Mesmo com um gigante de passagem a poucos metros em sua frente, não conseguiu se desligar de si. Com a atenção ainda no vazio, ouvia os berros vaporosos vindo da cabine de comando, avisava que o trem estava passando; vagões infinitos desfilando sobre os trilhos.

Fechou os olhos, desejando amargamente que, junto com o barulho, todo seu ser fosse arrastado para longe; seguiria o trem, qualquer que fosse seu destino.
Desejou com uma força desesperada, que sua consciência corresse, adentrando na mata, em velocidade sobre os trilhos, sem conflitos, sem vazio.
Queria tornar-se um viajante, queria tornar-se o próprio trem.
Queria, sobretudo, a todo custo, se livrar daquele sentimento lacerante.
Acreditou que se desejasse com tamanha intensidade, talvez, o impossível pudesse acontecer.

Abriu os olhos, o trem havia passado e o barulho se distanciava melancolicamente.

O impossível não aconteceu.

Ela ainda era ela.

E o vazio ainda estava ali.

Que fantasia boba, pensou, não havia mesmo como fugir...

Resignada suspirou discreta, virou a cabeça, voltando-se a quem a acompanhava. Tudo não passara de um instante, eterno e perdido na confusão do ser e do não ser.
Viu ali um rosto querido que ainda contava-lhe algo que o havia emocionado. Pensou então, que ele nem imaginara que por um ou dois segundo ela quis abrir mão de tudo e se entregar. Pensou o quão chateado ele iria se sentir caso ela, que tantas vezes servira exemplo de conduta, se entregasse assim, esquecendo de tudo, por causa daquele sentimento, insano e volúvel.

Teve pena dele, pelas tantas vezes que ela se distanciara, e pelas tantas que ela ainda iria se distanciar. Esforçou-se um pouco para dar-lhe atenção, queria ouvir. Talvez assim se esquecesse daquela constante agonia.

Quando o ônibus chegou, se despediram. A porta já ia se fechar, então ela entrou apressada e ele ali ficou.

Sentada, ainda o viu pela janela, quis acenar enquanto o ônibus dava a ré, mas dando as costas ele já havia tomado seu rumo, disfarçando no andar seguro a dor da solidão.

Lembrou-se da garota retardada, dias e noites sentada num quarto, sozinha. Ironicamente lhe ocorreu que talvez elas não fossem tão diferentes assim.

Então, confusa, estranha e igualmetente débil e solitária ela se foi...

7 comentários:

  1. as vezes historias nos fazem ter uma dor forte, percebemos que nos identificamos com o sofirmento, mas nao assando o que o outro passou.

    otimo texto.

    atualizando o beco, logo teremos uma nova resenha - www.becodaspalavras.wordpress.com

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  2. História muito comovente. Por incrível que pareça me identifiquei muito com ela. Seguindo seu blog, você escreve muito bem!

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  3. nossa algumas historas mesmo que não sendo verdadeiras nos deixam triste e muito pensativos
    a sua me fez isso, o sofrimento que vc passou nossa bateu forte de uma forta estranha.
    adorei vc escreve muito bem

    xau

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  4. Por um momento achei que ela fosse se jogar na frente do trem, rs.

    Eu me sensibilizo muito com a dor de seres humanos especiais. Tem um rapaz autista na minha escola, eu, mesmo meio apreensiva, converso com ele às vezes. E eu me sinto feliz quando ele demonstra entender e conhecer as pessoas. =]

    ótimo texto.

    beijos!

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  5. Eu também achei que ela ia se jogar...

    Essa serviu pra gente refletir que nenhum de nós é 100% "normal".

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  6. Toda história é verdadeira...
    puts, é bem isso Strider, valeu gente. :)

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  7. Todos nós temos um pouco dessa terrível dor e solidão...
    A estória é de uma intensidade imensurável!
    Adorei!

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