quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tagarelando


Quando me aproximo do ponto de ônibus, a primeira coisa que desejo é que não esteja ali nenhum conhecido meu.
De manhã a última coisa que quero é ter que ficar respondendo perguntas bestas de " como vai a faculdade?" "Como está sua mãe?" " e o namorado?", tendo que embarcar em papo furado de pessoa que não consegue suportar em silêncio suas débeis idéias.

- Ok, em parte é TPM.

Bom, esse foi mais um dia de sorte, só havia estranhos ali.
Cheguei, me enconstei no muro, ajeitei a pesada mochila no chão entre meus pés e me preparei para tirar uma cochilada antes do ônibus estacionar.
Contudo nem meu exacerbal sono pôde contra a tirania da falação alheia.
Uma senhora ao meu lado, tagarelava incansavelmente com outro senhor; seu amigo, marido, estranho, irmão, não deu pra saber. Isso porque o pobre coitado não falava um 'A' em resposta a mulher. Apenas aquiescia, as vezes com um 'uhum', 'éé' ou 'aham', os olhos fixos nela, não sei se estava em outro planeta, ou realmente escutando aquilo tudo.

A velha estava de costas para mim, não pude ver seu rosto, mas pela entonação da voz, parecia assumir uma indignação emocionada enquanto falava:

-... E o médico falou que a única saída para meus olhos agora é só com célula tronco!
A operação me custaria muito dinheiro! Eu disse que eu sou uma humilde trabalhadora de idade, teria que gaanhar na loteria para não ficar cega! Ganhar na loteria!

Seu discurso se estende por um tempo, e quando achei que ia sossegar, ela recomeça na contrapartida.

-...Meus olhos podem ficar cegos, mas Deus me deu meu olfato e minhas mãos, chorar eu não vou! Tenho mãos e com elas batalho todos os dias para continar viva!
Acredita que ele veio e me perguntou ainda se eu tinha diabete?? Disse que se minha saúde estivesse mal, a situação se agravaria mais rápido. OOnde já se viu!! Só por que a gente é assim troncuda ,gordinha, já ficam achando que é diabete, que é doença, que a gente se esbalda em comida.
Pois saiba, eu falei pra ele, que eu me cuido muito bem, me cuidei a vida toda. Preso pela minha saúde, não tenho nenhuma doença!

Já havia desistido de me encomodar e curiosa acompanhava a história dramática que a senhora baixinha gesticulava com as mãos ao bradar emocionada.
Eis que se vê chegando lá no fim da rua, o nosso ônibus esperado. Me desencosto, visto minha mala, separo o dinheiro da passagem, me posicionando para rumar à roleta e o cobrador.
A senhora e os outros no ponto fazem o mesmo, se ajeitando para embarcar.
Então antes que o onibus pare totalmente a velha vira a cabeça, e ocasionalmente posso ver metade de seu rosto. Reparo na pele, é clara-rosada, conservada e limpa, com rugas discretas, realmente parecia que seu cuidava bem. Reparo nos olhos, usava óculos de lente, mas não pude identificar se suas íris aparentavam cegueira ou não, gravei apenas o olhar perturbado dela, como se ainda estivesse bradando indignações caladas, continuava o descurso para si mesma.

Subimos.

Uma hora e meia depois eu desembarco, distraida atravesso a rodoviária e uma praça, só então percebo que caminho logo atrás do mesmo casal que conversava no ponto.
Vejo que ela continua a falar, dessa vez com o braço engatado no braço do senhor alto de olhos azuis ( e um chapeuzinho de pescador na cabeça), automaticamente volto a prestar atenção na conversa, diminuindo o rítimo dos passos afim de continuar atrás deles.

-...E o médico falou que ela tinha síndrome do 'ninho vazio'. Que ela se sentia triste e insatisfeita porque seus filhos todos tomaram seu rumo e foram embora, casaram e agora tem suas vidas. E ela continua lá sozinha, e por isso ficava tão mal e tem que tomar seus anti-depressivos.

Eu pensei- minha nossa, só fala de doença.

-...E eu disse pra ela: eeeu??? eeu não tenho tempo pra ficar doente. Não tenho tempo pra me sentir triste e muito menos ficar em depressão! Meus filhos também foram embora, mas eu preciso acordar todo dia disposta, eu preciso todo dia ir batalhar pelo pão de cada dia!!

Nessa parte eu associei a imagem da bunda quadradona dela que estava na linha dos meus olhos, ( pois estavamos subindo uma rua alta) com o 'pão de todo dia' e sem querer imaginei ela comendo, se entupindo de pão, enquanto na mesa, continuava o mesmo monólogo indignado dela sobre doenças&doenças.

Então, nossos caminhos se bifurcam. Eu me separava deles, mas ainda pude ouvir pela primeira vez a voz do senhor que acompanhava, a interrompendo:

-Será que é por aqui mesmo o caminho?

É, acho que ele nem a ouvia.

Segui a trajetória lembrando de pessoas cujas quais se pareciam muito com aquela senhora; reclamam, reclamam, falam de suas doenças, falam das doenças alheias, falam de Deus, falam de batalharem, falam de gratidão e se duvidar até sozinhas elas continuam com seus discursos bestas.
Mas se você conseguir olhar bem nos olhos dessas pessoas, só se vê desalegria e hipocrisia.

Só agora me dou conta de que o que vi nas orelhas do senhor eram aparelhos de audição. Fiquei pensando comigo, se ele não os havia desligado e concordava apenas por costume ou educação.
Porque francamente para conviver com alguém assim, só sendo surdo mesmo.

Como já diziam os chineses, e acrescentando aqui: quem muito fala de desgraças, pouco faz de bem...

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